terça-feira, 28 de junho de 2016

A Prisão do Espelho


Fui atirado à cela por seres brutos e impiedosos, não sei ao certo quanto tempo faz, não há relógios, não há Sol e nem Lua neste quadrilátero triangular. Há três paredes amplas e uma quarta parede estreita na ponta, as paredes largas são brancas e a estreita é de vidro, mas não me permite enxergar nada além de meu próprio reflexo. “Eles não me servem refeições, acho que não querem que eu defeque, filhos da puta, não me deixam nem cagar”.
“Hahaha”.
“Está rindo de quê?”.
“Por que não abaixa as calças e faz aí mesmo?”
“Não tenho vontade”.
“Então por que reclama?”
“Não estou falando com você”.
“Não tem mais ninguém aqui”.
“Estou falando sozinho, idiota!”.
“Então está falando comigo, meu caro. Olhe para você, está magro, fedido, desfigurado, e louco, lembra como era sua imagem quando chegou aqui?”
“Como posso me esquecer, se você vem sempre me lembrar?”.
Há um homem dentro da quarta parede, às vezes penso que ele foi embora, mas sempre que olho a parede, ali está ele, olhando pra mim, desafiando-me com sua postura ameaçadora e elegante, não perdeu a pose desde que cheguei aqui, ele é como um retrato de mim mesmo num dia bom, mas enquanto eu delfinho, ele permanece de aparência intacta, “nem mesmo a barba do maldito cresce”.
“Já a sua por outro lado, está bem grande não é mesmo? E o aspecto dela não é muito bom. Por que não tira com as próprias unhas, para ficar mais parecido comigo?”.
“Não consigo”.
“Você consegue, vai lhe fazer bem.”
“Tem certeza?”
“É claro.”

...

Não foi fácil, mas consegui arrancar boa parte, meu rosto está todo vermelho e sangrando um pouco, “mas agora me pareço um pouco mais com o que fui um dia”.
“Não tanto, mas ficou melhor.”
Havia um pouco de sangue em meus dedos, usei para escrever na parede, mas não era muito sangue, “gostaria de poder escrever mais coisas”.
“Então escreva”.
“Não possuo tinta”.
“Mas possui sangue... Ora não me olhe assim, não estou sugerindo um suicídio”.
Continuei mirando o desgraçado, até ele dizer o que tinha em mente.
“Faça um furo no dedo, vai ser como uma caneta vermelha, haha”.
“E com o que vou furar meu dedo?”
“Você não tem dentes? Tenho que ficar lhe dizendo como fazer tudo”.

...

Consegui furar meu dedo com o dente, não saiu exatamente como o esperado, e depois meu dedo acabou infeccionando, eu tive de furar outro pra continuar a escrever, fiz também desenhos das coisas que eu lembrava lá fora: um Sol, uma casa e desenhei também uma mulher, ela ficou tão bonita que tive uma ereção, “não sei quanto tempo faz que não vejo uma mulher”.
“Muito”.
“E você, homem do espelho, há quanto tempo não vê uma mulher?”
“Não muito”.
“Pode me dizer a quanto tempo estou aqui?”.
“Muito”.
“Você é um mentiroso! está aqui desde que eu fui jogado nesta cela! Como pode ter saído se sempre que eu olho vejo você dentro desse espelho?”
“Você não tem olhado muito, desde que começou escrever e desenhar com sangue nas outras paredes. Aproveitei esse tempo para matar a saudade de certa mulher”.
“Que mulher?! Como ela se chama?!”.
“Você sabe”.
“Não”.
“Sabe; e sabe muito bem” – riso.
“Você não faria...”
“Eu fiz, e foi ótimo”.
“Ela não é sua, você não sou eu”.
“Será?”
“Ela é minha!”
“Ninguém é de ninguém, amigo. Há quanto tempo está ausente? Espere; você não se lembra, Não é mesmo? É porque faz muito tempo, ela te esqueceu, todos esqueceram”.
Eu não podia mais aceitar a humilhação deste maldito reflexo, soltei um grito, como o rugido de uma besta furiosa, avancei contra o homem dentro da parede de vidro, soquei, soquei e soquei até minhas mãos sangrarem. O maldito ria e gargalhava, o vidro começou a rachar, eu continuei batendo, socando com toda força, mesmo com os punhos rubros de sangue eu bati até que o espelho se quebrasse e o reflexo egocêntrico desaparecesse.

Texto: Carlos Eduardo Taveira dos Santos
Imagem: Capa do livro 'As Ilusões Perdidas' - Balzac 

terça-feira, 21 de junho de 2016

Fim de Outono



Há tempos não escrevia uma nova crônica, os últimos dias têm sido frios, gélidos, estagnados, não lhe permitiam arregaçar as mangas, na verdade ultimamente usava mangas longas que ocultavam suas mãos, delicadas mãos de moça, símbolo do trabalho divino.

Sonhou com Palas Atena e despertou com a sensação de que não havia nada mais justo, “finalmente”, sussurrou para si. Demorou-se a levantar da cama, os dedos esguios da mão delicada escaparam para fora dos lençóis e buscaram ligar o notebook, pouco depois, estes mesmos dedos enrolavam um pequeno papel, recheado de erva; os lábios tocaram na folha e sugou a brasa que incandesceu e enfumaçou o âmbito, espalhando seu aroma por outros cômodos da casa, todos vazios.

Despertou tarde, mas ainda com tempo para aproveitar algo, recebera um argumento para transformar em roteiro para um filme de curta metragem, tinha outro projeto pessoal em andamento, mas o frio estagnava e a preguiça lhe preponderava, não obstante, lembrou-se que escreveu seu ultimo texto quando ainda era verão – os turistas abarrotavam a ilha, vindos principalmente, da Argentina e Uruguai, mas havia também europeus, norte-americanos; certa vez dialogara com um grupo de Israelitas bem simpáticos – hoje a ilha está vazia e fria.

Não quis sentir-se como o ambiente ao seu redor, estava feliz, A Deusa Razão concedera-lhe em sonho o intuito de completar um novo objetivo; deixou o beck de lado um pouco, a brasa que sugou lhe aqueceu o peito, mas ainda faltava algo, pôs-se a escrever.

Texto: Carlos Eduardo Taveira dos Santos.
          Link da imagem:
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segunda-feira, 23 de maio de 2016

Crônica das Garotas



Ambas estavam na rua, não por um momento ou uma noite, estavam permanentes e concomitantes nas ruas, elas se amavam e fugiram, viviam esse amor insano que muitos de nós já vivemos e viveremos. Não apenas por serem adolescentes, sentiam essa chama, esse carinho, esse cuidado e companheirismo; é de se deduzir que fugiram porque a família não aceitou. Pensamento equivocado mesmo que plausível, na verdade suas famílias não se importavam tanto, ao menos foi assim que me disseram.
Uma delas nasceu bastarda, até hoje não sabe quem é seu pai, seu padrasto vivia bêbado, ela se lembrava de seu hálito forte e azedo de cachaça, não só o hálito, ele todo parecia emanar um odor horrível pelos poros, mesclava-se ao cheiro de cigarro barato nas mãos e nas roupas, também na boca, o pau seboso. Sim, ele batia na mãe e violentava a enteada, ela nunca teve coragem pra contar, engolia sempre em seco. A mãe não sabia, ou fingia não saber, pois em tudo, sujeitava-se a ele, teve mais dois filhos dele e os tratava bem melhor que a filha bastarda e indesejada.
A outra também teve seus infortúnios, seu pai assaltou uma farmácia, na fuga trocou tiros com a polícia e acabou levando uma bala no peito, tive o ímpeto de perguntar se ele havia morrido, mas contive-me, descobri que sua mãe estava viciada em crack, dava pra qualquer um por “dez contos”, às vezes cinco. Acabou por ser internada e a garota passou para guarda da avó paterna, que sempre a culpava pela morte do filho assaltante, afinal se ele não tivesse engravidado aquela “casqueira da sua mãe”, como ela dizia, “não precisaria ter assaltado pra comprar leite pra você”, em seguida desferia inúmeros insultos ornamentados com palavrões, para a polícia, a mãe da garota, e qualquer um que tentasse defendê-la, como fazia por vezes seu avô.
Elas se conheceram num sarau, havia uma galera tocando violão, bebendo vodka e vinho, elas embriagaram-se e beijaram-se, dormiram juntas na casa da que morava com a avó, que por sorte não chegou a descobrir que é lésbica, acreditava que eram melhores amigas e nada mais, eram isso também, mas muito mais.
Ela não aguentava mais ver a mãe apanhando, era pior que ser violentada, a própria mãe a proibira de chamar a polícia. A outra não aguentava mais ouvir os xingos e acusações da avó, aprenderam fazer malabarismo com um pessoal que aparecia nos saraus, que ocorriam cada vez com mais frequência, decidiram então ir pra rua e viver assim.

Por Carlos Eduardo Taveira dos Santos

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Valsa Niilista

O pulsar que
impulsiona o
pulso da mão
de dedos em
brasa,

e junto com
a fumaça, vai-se
o pulmão e o
peito todo
que se desfaz
num sopro em
direção às
estrelas, faço
parte da mesma
dança cósmica,
passo a passo
girando e
girando rumo ao
fim, numa
valsa onde a
cada giro, tudo
se consome e
desaparece, eu
e o firmamento
inteiro entrelaçados,
somos brilho
passageiro, eu e
cada mundo, somos
bastardos, largados
a rodar e rodar sem
encontrar motivo
maior que o de
conceber a vida
que se acaba.


Texto - Cadu Taveira.