Fui atirado à cela por seres brutos e impiedosos, não sei ao certo quanto tempo faz, não há relógios, não há Sol e nem Lua neste quadrilátero triangular. Há três paredes amplas e uma quarta parede estreita na ponta, as paredes largas são brancas e a estreita é de vidro, mas não me permite enxergar nada além de meu próprio reflexo. “Eles não me servem refeições, acho que não querem que eu defeque, filhos da puta, não me deixam nem cagar”.
“Hahaha”.
“Está rindo de quê?”.
“Por que não abaixa as calças e faz aí mesmo?”
“Não tenho vontade”.
“Então por que reclama?”
“Não estou falando com você”.
“Não tem mais ninguém aqui”.
“Estou falando sozinho, idiota!”.
“Então está falando comigo, meu caro. Olhe para
você, está magro, fedido, desfigurado, e louco, lembra como era sua imagem
quando chegou aqui?”
“Como posso me esquecer, se você vem sempre me
lembrar?”.
Há um homem dentro da quarta parede, às vezes
penso que ele foi embora, mas sempre que olho a parede, ali está ele, olhando
pra mim, desafiando-me com sua postura ameaçadora e elegante, não perdeu a pose
desde que cheguei aqui, ele é como um retrato de mim mesmo num dia bom, mas
enquanto eu delfinho, ele permanece de aparência intacta, “nem mesmo a barba do
maldito cresce”.
“Já a sua por outro lado, está bem grande não é
mesmo? E o aspecto dela não é muito bom. Por que não tira com as próprias
unhas, para ficar mais parecido comigo?”.
“Não consigo”.
“Você consegue, vai lhe fazer bem.”
“Tem certeza?”
“É claro.”
...
Não foi fácil, mas consegui arrancar boa parte,
meu rosto está todo vermelho e sangrando um pouco, “mas agora me pareço um
pouco mais com o que fui um dia”.
“Não tanto, mas ficou melhor.”
Havia um pouco de sangue em meus dedos, usei para
escrever na parede, mas não era muito sangue, “gostaria de poder escrever mais
coisas”.
“Então escreva”.
“Não possuo tinta”.
“Mas possui sangue... Ora não me olhe assim, não
estou sugerindo um suicídio”.
Continuei mirando o desgraçado, até ele dizer o
que tinha em mente.
“Faça um furo no dedo, vai ser como uma caneta
vermelha, haha”.
“E com o que vou furar meu dedo?”
“Você não tem dentes? Tenho que ficar lhe dizendo
como fazer tudo”.
...
Consegui furar meu dedo com o dente, não saiu
exatamente como o esperado, e depois meu dedo acabou infeccionando, eu tive de
furar outro pra continuar a escrever, fiz também desenhos das coisas que eu
lembrava lá fora: um Sol, uma casa e desenhei também uma mulher, ela ficou tão
bonita que tive uma ereção, “não sei quanto tempo faz que não vejo uma mulher”.
“Muito”.
“E você, homem do espelho, há quanto tempo não vê
uma mulher?”
“Não muito”.
“Pode me dizer a quanto tempo estou aqui?”.
“Muito”.
“Você é um mentiroso! está aqui desde que eu fui
jogado nesta cela! Como pode ter saído se sempre que eu olho vejo você dentro
desse espelho?”
“Você não tem olhado muito, desde que começou
escrever e desenhar com sangue nas outras paredes. Aproveitei esse tempo para
matar a saudade de certa mulher”.
“Que mulher?! Como ela se chama?!”.
“Você sabe”.
“Não”.
“Sabe; e sabe muito bem” – riso.
“Você não faria...”
“Eu fiz, e foi ótimo”.
“Ela não é sua, você não sou eu”.
“Será?”
“Ela é minha!”
“Ninguém é de ninguém, amigo. Há quanto tempo está
ausente? Espere; você não se lembra, Não é mesmo? É porque faz muito tempo, ela
te esqueceu, todos esqueceram”.
Eu não podia mais aceitar a humilhação deste
maldito reflexo, soltei um grito, como o rugido de uma besta furiosa, avancei
contra o homem dentro da parede de vidro, soquei, soquei e soquei até minhas
mãos sangrarem. O maldito ria e gargalhava, o vidro começou a rachar, eu
continuei batendo, socando com toda força, mesmo com os punhos rubros de sangue
eu bati até que o espelho se quebrasse e o reflexo egocêntrico desaparecesse.
Texto: Carlos Eduardo Taveira dos Santos
Imagem: Capa do livro 'As Ilusões Perdidas' - Balzac