terça-feira, 19 de novembro de 2013

O colecionador de livros

Joaquim é um colecionador de livros, ele coleciona há anos e tem uma vasta quantidade, sua esposa faleceu e assim algumas despesas diminuíram e todas as reclamações acabaram. O que fez com que ele pudesse se dedicar mais a sua coleção e ampliá-la à quantia atual, Joaquim não tem filhos, é pobre e passou a vida toda fazendo serviço de peão, mora numa casinha pequena que ele mesmo erigiu e nunca reformou, com um quarto, uma sala e cozinha junto, além de um banheiro dois por dois.
            No começo os livros ocupavam o espaço na estante acima da televisão, depois mais livros começaram a aparecer na parte de baixo e ao lado do aparelho, até não caber mais nada, os livros continuavam aumentando e como Joaquim queria deixá-los sempre em exposição, foram parar em cima do armário, do guarda-roupa, sobre a mesa de madeira que deveria servir para jantar havia pilhas de livros, até na cama de casal, os livros ocupavam o lugar da falecida esposa no lado esquerdo do colchão. Joaquim pensou em aumentar um cômodo pra servir de biblioteca, mas nunca lhe sobrava dinheiro o suficiente, pois gastava muito com livros, não obstante comprou madeira e pregou prateleiras em todas as paredes do casebre, afastando os móveis e eletrodomésticos que o  atrapalhasse. Geladeira, fogão, armário, sofá, tudo que ficava rente à parede foi afastado para a fixação das prateleiras, e como tudo ficava no mesmo cômodo, imagine se for capaz, o que se tornou o interior da sala e cozinha, com todos os móveis desordenadamente próximos, impedindo até mesmo a circulação pelo âmbito, era preciso se espremer entre o fogão e a geladeira para chegar a pia, entre a mesa e o armário pra chegar ao sofá, além de ter que pular o sofá pra chegar ao quarto.
A coleção de Joaquim ocupava agora todas as prateleiras, sem deixar de ocupar os móveis; Joaquim os organizava dos maiores aos menores, separava pela cor da capa e também pela espessura, de vez em quando pegava um na prateleira (ou em qualquer outro lugar) e tocava a capa com a ponta dos dedos percorrendo as letras, sentia o cheiro e a textura das folhas, passava os olhos por aquelas palavras que deveriam dizer coisas maravilhosas, entregava-se a devaneios por alguns instantes e depois fechava o livro, tornava a guardá-lo no local exato, tinha ciúmes e jamais emprestou um livro para alguém.
            Um dia um peregrino veio bater à sua porta em busca de alimento e água, ele permitiu com que o homem entrasse; como era de se esperar o miserável viajante ficou verdadeiramente impressionado com a vastidão abarrotada de livros, mal se via a parede por trás das prateleiras cheias, ficou boquiaberto e ergueu as sobrancelhas, vislumbrou admiravelmente as pilhas de livros sobre os móveis, na mesa havia seis pilhas e cada uma com cerca de dois metros de altura, no sofá eles ocupavam dois dos três lugares. O peregrino, mesmo em suas andanças pelo mundo afora, nunca viu algo tão surreal, aquele senhor que acaba de recebê-lo é digno do guinness book, colocar tantos livros em tão pouco espaço.
"Vou lhe servir algo para comer", disse o Sr. Joaquim enquanto lhe entregava um copo de água, "sei que está meio assustado pela quantidade de livros, é que eu os coleciono", sua voz vacilava um pouco como quem esconde algo, "há um espaço na mesa", e afastou duas pilhas abrindo um vão entre elas para caber melhor o prato, "sente-se, por favor,", disse puxando a cadeira, "há muito tempo não recebo visitas, mas fique a vontade".
O peregrino demonstrou sua gratidão sorrindo e disse, "o senhor é um bom homem, não estou assustado e sim muito admirado com sua quantidade de livros".
Sentou-se na cadeira que lhe foi oferecida e enquanto o Sr. Joaquim preparava o prato, ele tinha na sua frente à visão encoberta pelas altas pilhas de livros na mesa, estando assim tão próximos, começou ler os nomes e ficou impressionado pelo bom gosto literário daquele senhor, ele viu nas bordas os nomes de Homero, Bocage, Dante, Racine, Shakespeare, Kafka, Tolstoi, Balzac, Goethe, Saramago, Sheridan, Dostoievski; o peregrino conhecia todos esses autores e já tinha lido muitos deles, sabia o valor intelectual daquele tipo de conteúdo e considerou igualmente aquele senhor, que neste instante colocava um prato de arroz e feijão na sua frente sobre a mesa.
Ao terminar sua refeição o peregrino resolveu perguntar, apenas por curiosidade, "quantos destes livros o senhor já leu?".
O Sr Joaquim não soube o que responder, gaguejou olhando ao redor, como se procurasse uma saída, depois disse, "mu...muitos, quase todos", forçou um sorriso amarelo.
"E qual gostou mais?" Perguntou o peregrino, notando o ar de mentira.
"Esse de capa azul", disse o Sr Joaquim apontando para o livro, ele estava começando a ficar frustrado e tenso.
O viajante apanhou o livro e fingiu ler o título, "o morro dos ventos uivantes".
"Isso mesmo", concordou o outro, "o morro dos ventos uivantes é meu favorito".
"Acontece que esse não é este livro, o Sr não sabe ler não é mesmo?"
Neste momento Joaquim começou chorar, "é verdade, eu não sei ler, apenas coleciono os livros, gosto do papel, das capas, do formato das letras, até mesmo do cheiro, às vezes abro algum e fico imaginando o que quer dizer, tocando as folhas e esperando que um dia esses símbolos gravados no papel possam me fazer sentido". Caiu de joelhos sucumbindo ao choro, aos soluços, e a vergonha.

O peregrino ficou inerte refletindo, dentro de um casebre de dois cômodos, onde mal cabiam os móveis, tudo abarrotado de livros, muitos de conteúdo valioso e totalmente desvalorizados, livros são para serem lidos assim como homens são para ser amados. Um livro que não é lido é como um tesouro que não enriquece por não ser gasto, e aquele homem agora chora com seu fardo, sem saber ler, apenas um pobre coitado, que desconhece o que acumula, mas que mantém acumulado.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Um Leão maduro

Sabemos que foi falado
A beleza do cavalo
Também foi mencionado
O espírito do elefante
Não fosse o bastante


Falaremos do leão
Com outra reflexão
Leão como rei consagrado
Famoso por juba e rugido
Selvagem, feroz e temido
Um caçador obstinado


Mas, não este nosso leão
Para ele isso é passado
O predador mais respeitado
Após conhecer a paixão
Deixou até a caça de lado


Antílopes pastando a frente
Seu olhar segue indiferente
Só quer sua leoa encontrar
Com ela permanecer e amar
Viver junto, puro e simplesmente


Carlos Eduardo Taveira

sábado, 9 de novembro de 2013

Dias de chuva

     Dias de chuva costumam me causar preguiça, quando acordo e ouço o barulho dos pingos na janela, olho através do vidro embaçado e das gotinhas d'água que escorrem pelo lado de fora, vejo um céu abarrotado de nuvens cinzas que cobrem o céu como se fosse um imenso edredom, imito a natureza e me cubro novamente apreciando esse pequeno prazer existencial, despertar num dia de chuva.
    Apesar do estado de espírito em que me encontro, não posso abandonar meus afazeres cotidianos, saio um pouco mais tarde da cama e compenso num banho mais rápido, preparo-me e apanho meu guarda-chuva, dirijo-me ao ponto saltando as poças d'água formadas nas irregularidades do asfalto e das calçadas, no ônibus dois senhores conversam sobre o clima, um deles diz ao outro: "Deveria era chover lá para os lados do nordeste, aqui em São Paulo o tempo é bom de chuva". deixei-me levar pela conversa que não era comigo, ele seguiu dizendo sobre o amigo do irmão de um primo que havia viajado para o nordeste e sentido pena de seus conterrâneos, lá o gado era vendido a preço de banana por estar morrendo de fome, uma seca devastadora mantinha o solo seco e já não chovia a mais de oito meses, refleti um pouco sobre o assunto e acabei me perdendo em outros devaneios, assim não pude ouvir mais nada da conversa.
    Outro belo elemento dos dias chuvosos é abstração ótica causada pela variedade de cores das cúpulas dos guarda-chuvas, principalmente no centro da cidade, onde o numero de pessoas transitando por todos os lados era maior, cúpulas de tecido amarelo, azul, verde, floridas, listradas, passavam umas pelas outras, e sob as varetas de aço, segurando no cabo do objeto, pessoas encolhidas que não se distraiam com tal futilidade, seguiam seu cotidiano e os pensamentos se direcionavam para os pontos e aspectos rotineiros, estavam preocupados em chegar ao trabalho, com a compra do mês, os problemas com os maridos, as mulheres e os filhos, as contas; a chuva era só mais uma adversidade, um infortúnio a mais para seu dia; lembrei da conversa que ouvi e pensei na dádiva de receber a chuva, enquanto outros clamavam pela mesma que não vinha, assim eu segui minha rotina tentando filtrar ao máximo a beleza de um dia chuvoso. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O dono da braçadeira

Meus lances já não são tão plásticos, não tô fazendo gol de bicicleta, mas ainda imponho respeito, sei portar bem a braçadeira, continuo fugindo da marcação, de vez em quando tiro uma de letra, e quando a fase não está boa, a gente agradece até gol de canela, estou tranquilo e deixando o jogo rolar, quem um dia foi artilheiro não se esquece de como jogar.