Joaquim é um
colecionador de livros, ele coleciona há anos e tem uma vasta quantidade, sua
esposa faleceu e assim algumas despesas diminuíram e todas as reclamações acabaram.
O que fez com que ele pudesse se dedicar mais a sua coleção e ampliá-la à
quantia atual, Joaquim não tem filhos, é pobre e passou a vida toda fazendo
serviço de peão, mora numa casinha pequena que ele mesmo erigiu e nunca
reformou, com um quarto, uma sala e cozinha junto, além de um banheiro dois por
dois.
No começo os livros ocupavam o espaço
na estante acima da televisão, depois mais livros começaram a aparecer na parte
de baixo e ao lado do aparelho, até não caber mais nada, os livros continuavam
aumentando e como Joaquim queria deixá-los sempre em exposição, foram parar em
cima do armário, do guarda-roupa, sobre a mesa de madeira que deveria servir
para jantar havia pilhas de livros, até na cama de casal, os livros ocupavam o
lugar da falecida esposa no lado esquerdo do colchão. Joaquim pensou em
aumentar um cômodo pra servir de biblioteca, mas nunca lhe sobrava dinheiro o
suficiente, pois gastava muito com livros, não obstante comprou madeira e
pregou prateleiras em todas as paredes do casebre, afastando os móveis e
eletrodomésticos que o atrapalhasse. Geladeira, fogão, armário, sofá,
tudo que ficava rente à parede foi afastado para a fixação das prateleiras, e
como tudo ficava no mesmo cômodo, imagine se for capaz, o que se tornou o
interior da sala e cozinha, com todos os móveis desordenadamente próximos, impedindo
até mesmo a circulação pelo âmbito, era preciso se espremer entre o fogão e a
geladeira para chegar a pia, entre a mesa e o armário pra chegar ao sofá, além
de ter que pular o sofá pra chegar ao quarto.
A coleção de Joaquim
ocupava agora todas as prateleiras, sem deixar de ocupar os móveis; Joaquim os
organizava dos maiores aos menores, separava pela cor da capa e também pela
espessura, de vez em quando pegava um na prateleira (ou em qualquer outro
lugar) e tocava a capa com a ponta dos dedos percorrendo as letras, sentia o
cheiro e a textura das folhas, passava os olhos por aquelas palavras que
deveriam dizer coisas maravilhosas, entregava-se a devaneios por alguns
instantes e depois fechava o livro, tornava a guardá-lo no local exato, tinha
ciúmes e jamais emprestou um livro para alguém.
Um dia um peregrino veio bater à sua
porta em busca de alimento e água, ele permitiu com que o homem entrasse; como
era de se esperar o miserável viajante ficou verdadeiramente impressionado com
a vastidão abarrotada de livros, mal se via a parede por trás das prateleiras
cheias, ficou boquiaberto e ergueu as sobrancelhas, vislumbrou
admiravelmente as pilhas de livros sobre os móveis, na mesa havia seis
pilhas e cada uma com cerca de dois metros de altura, no sofá eles ocupavam
dois dos três lugares. O peregrino, mesmo em suas andanças pelo mundo afora,
nunca viu algo tão surreal, aquele senhor que acaba de recebê-lo é digno do
guinness book, colocar tantos livros em tão pouco espaço.
"Vou lhe servir
algo para comer", disse o Sr. Joaquim enquanto lhe entregava um copo de
água, "sei que está meio assustado pela quantidade de livros, é que eu os
coleciono", sua voz vacilava um pouco como quem esconde algo, "há um
espaço na mesa", e afastou duas pilhas abrindo um vão entre elas para
caber melhor o prato, "sente-se, por favor,", disse puxando a
cadeira, "há muito tempo não recebo visitas, mas fique a vontade".
O peregrino
demonstrou sua gratidão sorrindo e disse, "o senhor é um bom homem, não
estou assustado e sim muito admirado com sua quantidade de livros".
Sentou-se na cadeira
que lhe foi oferecida e enquanto o Sr. Joaquim preparava o prato, ele tinha na
sua frente à visão encoberta pelas altas pilhas de livros na mesa, estando
assim tão próximos, começou ler os nomes e ficou impressionado pelo bom gosto
literário daquele senhor, ele viu nas bordas os nomes de Homero, Bocage, Dante,
Racine, Shakespeare, Kafka, Tolstoi, Balzac, Goethe, Saramago, Sheridan, Dostoievski;
o peregrino conhecia todos esses autores e já tinha lido muitos deles,
sabia o valor intelectual daquele tipo de conteúdo e considerou igualmente
aquele senhor, que neste instante colocava um prato de arroz e feijão na sua
frente sobre a mesa.
Ao terminar sua
refeição o peregrino resolveu perguntar, apenas por curiosidade, "quantos
destes livros o senhor já leu?".
O Sr Joaquim não
soube o que responder, gaguejou olhando ao redor, como se procurasse uma saída,
depois disse, "mu...muitos, quase todos", forçou um sorriso amarelo.
"E qual gostou
mais?" Perguntou o peregrino, notando o ar de mentira.
"Esse de capa
azul", disse o Sr Joaquim apontando para o livro, ele estava começando a
ficar frustrado e tenso.
O viajante apanhou o
livro e fingiu ler o título, "o morro dos ventos uivantes".
"Isso
mesmo", concordou o outro, "o morro dos ventos uivantes é meu
favorito".
"Acontece que
esse não é este livro, o Sr não sabe ler não é mesmo?"
Neste momento Joaquim
começou chorar, "é verdade, eu não sei ler, apenas coleciono os livros,
gosto do papel, das capas, do formato das letras, até mesmo do cheiro, às vezes
abro algum e fico imaginando o que quer dizer, tocando as folhas e esperando
que um dia esses símbolos gravados no papel possam me fazer sentido". Caiu
de joelhos sucumbindo ao choro, aos soluços, e a vergonha.
O peregrino ficou
inerte refletindo, dentro de um casebre de dois cômodos, onde mal cabiam os
móveis, tudo abarrotado de livros, muitos de conteúdo valioso e totalmente
desvalorizados, livros são para serem lidos assim como homens são para ser amados.
Um livro que não é lido é como um tesouro que não enriquece por não ser gasto,
e aquele homem agora chora com seu fardo, sem saber ler, apenas um pobre
coitado, que desconhece o que acumula, mas que mantém acumulado.